
Nos dias de hoje, as pessoas com deficiência ainda tropeçam em barreiras que não deveriam mais existir. O tempo passou, mas os coronéis continuam vivos. Não carregam mais rifles nem chicotes, mas reinam nos gabinetes refrigerados, vestidos de terno e gravata. Suas armas são outras: o capacitismo, o descaso e a indiferença.
No sertão de Lampião, por mais duro que fosse o chão da caatinga, havia respeito.
Neco, filho de Corisco, era cego e tinha cerca de 18 anos. Trabalhava com o pai na feira livre, vendendo rapadura e outros produtos, ajudando a sustentar a família e aprendendo cedo o valor do trabalho honesto. Um dia, na feira da vila, foi humilhado por Toinho Malino, um jagunço protegido por coronéis locais, que achou graça da sua condição. Lampião não deixou barato. Mandou dar uma surra no covarde e o obrigou a desfilar justamente no mesmo mercado onde havia ridicularizado o rapaz. Fez questão de mostrar que a vergonha não seria de Neco, mas de quem ousasse desrespeitá-lo.
João Ferreira, com 35 anos, era um homem trabalhador e habilidoso. Mesmo depois de ficar deficiente físico devido a uma febre alta — provavelmente paralisia infantil —, não se deixou parar e passou a andar em cadeira de rodas. Consertava bolsas de madame, lidava com couro, fabricava celas para animais e prestava outros serviços manuais, mantendo sua dignidade e sustentando-se com esforço próprio. Também foi alvo da chacota dos coronéis Jacinto Manoel e Sebastião. Lampião não pensou duas vezes: mandou quebrar as pernas deles. A mensagem era clara como o sol do sertão — quem humilhasse um homem por sua deficiência aprenderia, na carne, o peso da própria crueldade.
E hoje?
Hoje temos leis, discursos e tecnologia, mas ainda tropeçamos no essencial: respeitar a dignidade do outro. Os novos coronéis se escondem nos gabinetes com ar-condicionado. Não usam armas de fogo, mas ferem com gestos frios: negam cuidadores nas escolas, impedem o acesso à saúde adequada, negam educação de qualidade e assistência social, ocupam vagas que deveriam garantir inclusão. Não quebram ossos, mas quebram futuros. Não derramam sangue, mas sufocam esperanças todos os dias.
São coronéis de terno que carregam um poder silencioso, mas devastador. Matam pela omissão. Ferem pelo riso debochado. Humilham pelo simples virar de rosto. E o fazem com a mesma arrogância de quem acredita estar acima da vida dos outros.
Mas a vida, essa mestra implacável, cobra caro. E cedo ou tarde, devolve com juros o que foi negado. Talvez fosse bom que esses coronéis de gabinete aprendessem a lição que o cangaço já ensinava: dignidade não se negocia, respeito não se pede de favor, e ninguém tem o direito de diminuir o outro por sua deficiência.
Porque, no bando da existência, a ordem é uma só — ninguém fica para trás.